Revista Bicicleta por André Geraldo Soares 17/06/2013
Foto: Pi-Lens
Assim
como ninguém chama uma pinguela de ponte nem uma viela de avenida, não
podemos permitir que se difundam denominações erradas a respeito das
vias ciclísticas, principalmente porque algumas vezes tais denominações
são propositalmente enganosas. Por maior esforço que façam os prefeitos
nos seus discursos, por ignorância ou má-fé, um risquinho pintado na
beira do asfalto não é uma ciclovia.
O mais duro ao ouvir uma impropriedade dessas é saber que a via
ciclística levou um bom tempo sendo pensada, projetada, contratada e
executada, tramitando por vários departamentos técnicos da administração
pública e de empresas de engenharia. Passou pelas mãos de técnicos com
conhecimento de sistema viário, de legislação e de operacionalização de
trânsito e mesmo assim, quando pronta, lá vai o prefeito inaugurar, ou
apenas seu departamento de comunicação divulgar uma deformidade como se
fosse uma maravilha da segurança e do respeito à dignidade do ciclista.
O Código de Trânsito Brasileiro é bastante claro: ciclovia é uma
“pista própria destinada à circulação de ciclos, separada fisicamente do
tráfego comum” (por mureta, canteiro ou similar), e ciclofaixa é “parte
da pista de rolamento destinada à circulação exclusiva de ciclos,
delimitada por sinalização específica” (com pintura, tachões reflexivos
etc). Infelizmente, o detalhamento ainda não está regulamentado, mas as
orientações do Ministério das Cidades são claras (ilustradas por
tabelas) e respaldadas por técnicos especialistas: ciclofaixas podem ser
instaladas apenas em vias com pequeno fluxo de veículos motorizados
(unidades/hora) e com baixa velocidade máxima permitida (km/hora); nas
vias públicas onde há grande fluxo de veículos motorizados circulando em
velocidades letais, é necessária a instalação de ciclovias.
Portanto, mesmo que seja tecnicamente boa, uma ciclofaixa converte-se
em uma ciclofarsa se instalada em uma avenida de tráfego denso e
rápido. É uma fraude para os ciclistas que dela farão uso, pois estes
não contarão com a segurança necessária para pedalar despreocupadamente;
é um logro para a sociedade em geral, que, por desconhecimento, ficará
com a impressão de que a nova estrutura é uma grande contribuição para a
cidade.
Além disso, tanto ciclovias como ciclofaixas precisam ter largura
suficiente, sinalização clara e abundante, pavimento plano, iluminação e
drenagem adequadas e tratamento especial nos cruzamentos com as vias de
motorizados. Está tudo lá no “Caderno de Referência para elaboração de
Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades”.
Uma via ciclística exclusiva deve ser segura para todas as pessoas e
não apenas para jovens hábeis e destemidos. Uma ciclovia ou ciclofaixa
estreita, mal sinalizada e com obstáculos (postes, lixeiras, bueiros
etc.) torna-se um ciclorrisco, uma verdadeira armadilha, principalmente
para crianças, idosos e pessoas com pouca experiência. Pesquisas
comprovam que mais de 50% das pessoas estariam dispostas a usar a
bicicleta como meio de transporte se houvesse segurança (o que é chamado
de “demanda reprimida”), mas muitas ciclovias e ciclofaixas são tão mal
feitas que não conseguem ser atraentes para elas.
As vias públicas explicitamente compartilhadas com ciclistas (apesar
de que, legalmente, todas as vias públicas o são), tal como as recentes
ciclorrotas de São Paulo, também precisam garantir segurança para os
pedaladores, mas desta vez com a redução da velocidade dos motorizados,
farta sinalização vertical e horizontal, eliminação de faixas de
estacionamento e constante fiscalização dos agentes de trânsito. Não se
pode recomendar aos ciclistas que sigam determinada rota se na prática
ela é tão hostil a eles quanto as demais vias públicas.
Outro problema crônico nas administrações públicas municipais, e que
não incentiva o cidadão a comprar uma bicicleta, é a ausência de uma
política cicloviária autêntica, o que resulta na construção de vias
ciclísticas frequentemente curtas, instaladas em locais menos
prioritários e, mais frequentemente ainda, isoladas e desconectadas. Sem
responsáveis nomeados, sem planejamento de expansão a médio e longo
prazo, sem estruturas adicionais de integração intermodal e sem a
participação da sociedade, os ciclistas não têm como confiar que as
ciclofaixas ou ciclovias de má qualidade sejam aprimoradas futuramente.
Portanto, o debate sobre a nomenclatura cicloviária não meramente de
caráter conceitual e abstrato, é um debate fundamentado na realidade da
malha cicloviária das cidades brasileiras, que está longe de atingir uma
qualidade média. Chamar a atenção sobre o uso inadequado da
terminologia não é uma questão de purismo linguístico, não é uma
perseguição aos escorregões semânticos dos jornais ao reproduzirem as
declarações dos secretários de obras, é uma questão de esclarecimento
social e de precaução contra os embustes – especialmente em período
eleitoral! É uma questão de não comprar gato por lebre, sobretudo quando
quem paga a conta é o cidadão, seja com seus impostos, seja com seus
ossos.
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